Braçadas
O conto abaixo foi pensado para ser lido com a seguinte música:
Mais uma braçada. E mais uma. Agora outra.
Mais forte. Vamos lá. Água fria corria por seus braços. A única coisa que enxergava na escuridão. É mais para Baixo. Só pede ser. Sacudiu o tórax junto com as pernas e impulsionou o tronco para a frente. Seus músculos relaxaram. Estava leve e, apesar da resistência da água, seus movimentos vinham cheios de direção e proposito.
A temperatura seguia o padrão dos seus movimentos. Seus braços esquentavam ao esticar à frente de seu rosto e esfriavam assim que remava. Havia algo hipnótico naquele ritmo. Todas as ações tinham propósitos e consequência que eram informados e moldados pelos movimentos anteriores. É só ir para baixo e pegar a pedra. Moleza. Pensava no ritmo das braçadas. Do chão não passa.
A não ser que o chão seja fundo demais. Sacudiu a cabeça em um espasmo de negativa. Ficar pensando assim só vai fazer todo esse processo demorar ainda mais. Até porque não tem muito mistério. É só pegar a pedra e voltar para a superfície. Qualquer idiota faz isso. Sentiu o frio passar por entre seus dedos e sorriu. Por que eu estou fazendo isso, então? Seu coração apertou e logo em seguida um longo canto de baleia cortou o silencio do líquido que o cercava.
No segundo seguinte voltou a remar para o fundo. Para de pensar merda. Quanto antes você terminar isso, melhor. Depois é só levar de volta para a superfície e vai dar tudo certo. Porém sua nuca se recusava a se descontrair. Nem pensa nessas coisas. A pressão empurrava seus tímpanos contra o crânio e os pelos de seus braços pareciam afundar em sua pele. Cada novo movimento o encaixava ainda mais no líquido ao seu redor.
Mais um canto agudo de baleia surgiu à sua esquerda e, em um movimento involuntário, se encolheu em uma bola e gritou, soltando quase todo ar em seus pulmões. Não. Contraiu o cenho. Merda. Eu tenho que subir. Levantou o rosto em busca das bolhas de ar, mas não as encontrou. Cadê? Rodou a cabeça junto com os olhos de um lado para o outro em busca das malditas bolhas, mas elas insistiam em se esconder.
Merda. Eu preciso ir para cima. Mas onde é “para cima”? Fechou os olhos e tentou sentir as direções. Nada. Merda. Eu tenho que fazer alguma coisa. Eu preciso sair daqui. Eu preciso de ar. Agora. Seu peito apertava junto com as suas veias. Se não fosse pela pressão da água que o cercava teria vomitado.
Segundos se arrastaram em silencio até que, de uma só vez, escolheu um lado aleatório e começou a nadar naquela direção. Quer saber? Foda-se. Melhor do que ficar parado aqui. Esticava e contraia os membros com toda a força que tinha, sem pausa. Vamos lá. Não para. Um, dois, três, quatro. Não para. Um, dois, três, quatro. Só mais um pouco. Só mais um pouco e você sai daqui.
Toda a sua atenção estava focada em seus membros, especialmente os braços. Percebia com clareza a resistência da água nas palmas de suas mãos e como ela influenciava a direção e impulso que tomava. As mudanças térmicas permaneceram, porém estavam muito mais acentuadas. O calor agora cobria todo o seu corpo e queimava a ponta de seus dedos, enquanto o frio que o seguia enrijecia os seus músculos e deixava seu rosto dormente.
Não vai dar. Ainda não tem luz. Eu tenho que respirar. Travava a garganta em uma tentativa desesperava de constringir o pouco ar que o sobrava. Não solta. Por favor, não solta. Seus olhos semicerrados em busca de luz, contudo não encontrava nada além de escuro. Acelerou as braçadas e seus músculos começaram a arder. Especialmente os braços, as pernas e o abdome.
Vai. Não para. Você não pode parar agora. As braçadas eram ainda mais rápidas agora. Um. Mais um pouco. Dois. Não para. Três. É só até a superfície. Quatro. Falta pouco. Cinco. Ainda tem ar. Sem perceber, fechou os olhos em uma tentativa de guiar todo o resto de sua atenção para o físico. Esquecera de todo o resto ao seu redor. Os músculos não doíam. Os pulmões não ardiam. A nuca não formigava.
Tudo contraía. Tudo se movimentava. Até que, em um momento desprovido de razão, tudo parou.
Eu escolhi o lugar errado. Merda! Gritou em sua mente. Relaxou o corpo e o deixou se contrair. Não teve certeza, mas sentiu as ondas baterem em seu ombro esquerdo, fazendo seu corpo curvado girar devagar para a direita. Eu devia ter prestado atenção na porcaria das bolhas de ar. Aí eu não tinha que ficar adivinhado para que merda de lado é “para cima”. Bufou e o resto do ar fugiu de seus pulmões. Por que caralhos eu desci para pegar essa filha da puta dessa pedra?
No segundo seguinte mais um canto de baleia surgiu à sua direita, muito mais perto desta vez. Corre! Porém os seus músculos permaneceram estáticos. Para que? E se essa baleia me pegar? Eu não sei para que lado eu tenho que ir, de qualquer maneira. Assim que o pensamento terminou, o que pareceu a mesma baleia cantou e, assim que não houve resposta, voltou a cantar.
Comida de baleia é melhor do que afogado. E quem disse que baleia come gente? Mas come, não come? Procurou sem sucesso a origem do som e deu com os ombros. Não importa. Agora não tem muita salvação. Sua atenção voltou para o seu peito e percebeu que parara de arder. Ué? Água entrava por sua garganta, enchia os pulmões e saía sem pressa.
Eu...O que? Apalpou o tórax em busca alguma anomalia, mas não encontrou nenhuma. Permaneceu estático por mais alguns segundos e logo em seguida encheu os pulmões com água. O líquido escorreu com suavidade para dentro de seu corpo, sem nenhuma dor ou ardência. Isso não é água. Não pode ser. Esticou as pernas em busca de chão, porém o movimento somente o fez afundar ainda mais.
Não. Eu estou definitivamente em um líquido. Mas não pode ser água. Eu não respiro água. Negou com a cabeça e bateu as palmas das mãos nas coxas. Mas eu também não respiro líquido. Não. Isso não faz sentido nenhum. Alguma coisa tem que estar acontecendo. Desceu o rosto até encostar o queixo no peito. Tá. Vamos começar do começo. Pensa. Como foi que você chegou aqui? Eu... Desci para pegar a pedra, foi?
Outro canto de baleia. Mas por que eu decidi mergulhar para pegar uma pedra? Eu mal sei nadar. O canto ficou ainda mais alto. Mas, mesmo assim, o que eu estava fazendo antes? Isso. Boa pergunta. Anuiu em um leve sorriso. Eu estava no escuro, não é isso? Eu estava naquele escuro roxo e aí.... Merda! E aí o que?
Sentia o ritmo das ondas indo e vindo em seus braços, pernas e rosto. Cada nova onda trazia frio e cada nova sensação de frio relaxava a sua pele. Eu não sei. Eu não sei nem aonde é que eu estou. Flutuando, é isso? Ou afundando? E por que caralhos eu estou conseguindo respirar água? Seus olhos arregalaram e seu peito apertou. Eu morri?
Não. Calma. Pelo amor de Deus, se controla. Só porque você não sabe o que está acontecendo, não quer dizer que você morreu. Esvaziou os pulmões para se acalmar e a água escorreu quente por sua boca. Mas o que, então? Eu estou sonhando? Em um estalo, todo o sangue correu para sua cabeça e girou o tronco para dar um soco na água ao seu redor. Assim que terminou o movimento, voltou a ficar imóvel, girando lentamente no abismo.
Por que essa merda tem que ser tão escura? Pensou ao gritar. Em um espasmo da perna esquerda deu um coice no nada, o que só fez com que começasse a girar mais rápido. Gira mesmo. Foda-se. Não sei que lado é o que. Fungou e o catarro, junto com a água fez seu estomago apertar. Cuspiu para não vomitar.
Como eu faço para sair daqui? Vamos lá. Pensa. Fechou os olhos e apoiou as mãos na nuca. Pelo jeito eu estou respirando água, então não tem como ver para qual direção as bolhas de ar estão indo. Já que não tem bolhas de ar. Começou a bater os pés de maneira quase inconsciente. E também não tem luz, então não dá para seguir o sol. Isso partindo da premissa que está de dia. Arregalou os olhos e levantou o rosto. Isso. Se bobear está de noite. E assim que o sol nascer eu consigo ver como sair daqui.
Seu cenho desceu logo em seguida. Não. Nada disso daqui faz sentido. Eu não posso contar que o eu vou conseguir ver o sol se ele nascer. Isso se o que for que seja “aqui” tenha sol. Bufou e coçou atrás da orelha. Mas não dá para ficar aqui para sempre. Eu tenho que pensar em alguma coisa. Alguma coisa tem que fazer sentido.
A pedra! O pensamento veio em um estalo seguido por um canto de baleia abaixo de seus pés. Isso. Essa merda dessa pedra é a única coisa que eu me lembro desse lugar. Contraiu os braços. Mas e daí que é a única coisa que eu me lembro? Ainda não faz sentido procurar um objeto desse tamanho no meio da escuridão. Mas também não adianta ficar sem fazer nada aqui. Respirou fundo ao esfregar as mãos no rosto.
Desceu os olhos e, apesar da completa escuridão, teve certeza de que estava olhando para a pedra roxa. Antes de que pudesse formar algum pensamento completo, torceu o tronco na direção do objeto e começou a remar. Isso! Está ali. Eu sabia. A pressão da água arranhava sua pele a cada novo metro que descia, porém nada doía, sequer incomodava.
A mudança de temperatura acariciava cada um de seus pelos e, sem perceber, sorria. Uma presença pairava sobre a sua cabeça. Não olha. Foca na pedra. Seus ombros permaneceram relaxados. Até porque deve ser a porcaria da baleia. E baleia não come gente. O pensamento amargou a sua boca e, em uma contração de músculos que pareceu instantânea, parou de remar e girou o abdome para a direção na qual cria que estava a criatura. Merda de bicho. Rodou os olhos pelos seus arredores e assim que percebeu que estava escuro demais para enxergar algo independentemente do tamanho, girou o tronco para a pedra e voltou a remar.
Não se passaram trinta segundos até sentiu a ponta dos dedos da mão direita se chocarem com o fundo. Deixou o corpo cair devagar até encostar os joelhos o chão. A pedra não emitia brilho ou som ou qualquer vibração, mas a sua mão esquerda a agarrou de uma só vez. Encaixava-se perfeitamente em sua palma. Trouxe a pedra, que de alguma maneira sabia que era roxa e a apertou contra o peito. Sorria de orelha a orelha.
Ainda bem. Trouxe a pedra para perto do rosto e a encostou em sua testa. Estava quente. Apoiou a mão direita no chão e se levantou. Sentiu o chão mole passar por entre os dedos de pés em meias cocegas e esticou a coluna. Agora foi. Ainda bem que eu estou com ela. Cada molécula de seu corpo sorria. Ajeitou os cabelos para trás para secá-los. Secar?
Passou a mão pelo corpo e percebeu que todo o líquido desaparecera. Não. Peraí. A pedra, agora circular, escapou de sua pegada e rolou tilintando para fora de seu alcance. Não! Merda! Deixou o corpo cair sobre os joelhos e começou a tatear o chão havia endurecido. Não! Por favor. Não vai embora. Por favor. Seus movimentos ficavam cada vez mais rápidos, longos e desconexos. Pelo amor de Deus, não vai embora. Fica comigo. Eu vim até aqui por sua causa. A palma de sua mão esquerda escorregou e seu peito bateu oco contra o chão. Cadê você?
Uma luz roxa surgiu a menos de dez metros à sua frente. A pedra redonda pulsava a cada dois ou três segundos. Graças a Deus. Empurrou o corpo para cima de uma só vez e correu para a luz, porém quanto mais se aproximava, mais longe o objeto ficava. Não vai embora, por favor. Fica. Batia os pés o mais rápido que conseguia, pulava, tropeçava e se levantava, mas nada adiantava, a luz roxa insistia em se afastar.
Depois do que pareceu uma eternidade, suas pernas falharam e teve que aparar a queda com as mãos para não bater o rosto no chão. Por que você está fugindo? Tudo o que eu fiz foi para chegar perto de você. E você foge? Tentou afastar as lagrimas com as palmas das mãos. Suas bochechas ardiam. Por que você não fica? Merda! Socou o chão com a mão esquerda.
Por que eu faço isso comigo? O ar chiava ao passar por seus dentes, junto com a saliva grossa. Toda vez é a mesma coisa. Eu vou atrás, me esforço e nada. Sou sempre eu que estou atrás e nada acontece. Merda. Merda! Seu peito tremia ao respirar. Por que eu faço isso comigo? Por que eu corro atrás? Por eu insisto em seguir essa porcaria dessa bola?
O canto da baleia ecoou pela escuridão. Cala a boca! Sentou-se ao gritar. A baleia cantou mais uma vez. Cala a sua boca! Cerrou os dentes e estufou o peito em desafio. Alguns segundos de silencio se arrastaram até que o canto ecoou mais uma vez. Filha de uma puta! Para de me seguir. Mais alguns momentos de silencio se passaram até que, de uma só vez, um olho enorme surgiu a menos de cinco metros. Da mesma cor da pedra redonda.
– Não. – Uma voz grossa surgiu da direção do olho.
Todos os ossos de seu corpo tremeram e, pela primeira vez desde que se lembrava, sua mente esvaziou. – Eu... Eu... – As palavras fugiam de sua boca. – Eu não sabia.
– Estou ciente de sua falta de ciência. – Seu único olho visível pareceu dobrar de tamanho sem se aproximar.
Seus instintos empurraram seu corpo para trás, afastando da baleia. – Eu não quis te ofender. Não foi a minha intenção. – Gaguejava. – Desculpa. Por favor.
– Já foi dito que tenho ciência de suas intenções. – Suas palavras mexiam o ar ao seu redor. – Repetições não fazem das palavras mais sinceras.
Cento e oitenta e um segundos de mais silencio se passaram. – Eu posso ir embora?
– Minha função não é lhe impedir de ir embora. – Sua voz vinha grossa, muito diferente do canto de antes. – Porém o que você chama de pedra tem que ficar aqui. Está além de sua escolha. – Em momento algum perdeu a calma.
Seu lábio afinou e seu queixo tremeu. – Por favor. Ela é minha.
– Tenho certeza de que acredita nisso. Está além de sua escolha. – Piscou e, por um segundo, o mundo ficou escuro. – Essa vontade não se fará real.
Seus nervos se afiaram de uma só vez. Levantou-se com calma. Sentia as mínimas falhas do chão duro na sola de seus pés e as pequenas mudanças de ar nas pontas de seus dedos. Apesar de suas narinas estarem completamente desobstruídas, fungou e passou o polegar no nariz para limpá-las. Sua respiração calma contradizia a velocidade de seus pensamentos. Ergueu o queixo e, antes de que a baleia pudesse reagir, disparou para a pedra.
Tudo aconteceu em um borrão. Pela primeira vez desde que a água virou ar, o objeto roxo não se afastou e contentou-se em apenas pulsar sua cor roxa. Isso! Eu estou chegando. O chão duro arranhava a ponta dos dedos dos seus pés. Recusava-se a olhar para trás. Só mais um pouco que eu estou chegando. Só mais um pouco. Teria sorrido se seu rosto não estivesse tão tenso.
No momento seguinte a pedra desapareceu e, no lugar no qual ela estava, o olho da baleia piscou. – Já foi dito que o que chama de pedra não se quedará em sua posse.
– Não. Eu não ia pegar a pedra. – As palavras saíram sem nenhuma credibilidade. Todo o seu ser tremeu. – Eu só estava correndo.
O olho diminuiu até ficar com pouco menos de quinze centímetros e se aproximou. – Suas mentiras não enganam nem a mim nem a você. – As palavras vieram cheia de uma agressividade fria. – Agora que provou que suas ações estão além do seu controle, afaste-se e siga o seu caminho. Não me repetirei.
Sua atenção quicava sem pausa entre o olho da baleia e seus próprios pés. Não. Quem é você para dizer o que eu tenho que fazer. A pedra é minha! Esfregou as palmas das mãos nas coxas para secá-las e logo em seguida as cerrou em punhos. Você vai sair da minha frente e calar a porra da sua boca. Girou o tronco e subiu um soco no olho à sua frente.
O Som oco do soco contra o olho duro foi seguido por uma dor aguda nos ossos da mão direita que mal foi registrada por sua mente. Um murro torto veio pela esquerda. Essa á a minha pedra. Minha! Direita, esquerda, direita, esquerda, direita, esquerda. Os socos não paravam e, a cada novo impacto, a dor só aumentava. Quando sentiu o anelar esquerdo estalar, deu dois passos para trás e gritou. – Ela é minha!
– Não, ela não é. – A voz da baleia se acalmou.
Mostrou os dentes. – Eu vou ficar com ela!
– Não. Você não vai. – O olho perdeu parte da luminosidade.
Seus olhos encheram d’água e seu queixo enrugou. – Por favor. Eu preciso dela. Ela é minha.
– Estou ciente. Nada disso nunca foi escolha sua. – E o olho apagou devolvendo o mundo ao escuro.
Um impacto em sua testa fez seu corpo girar. Quase todo o seu peso foi embora ao mesmo tempo que ondas de frio e calor acariciaram a sua pele. Esticou os braços em busca da baleia e sentiu a água resistir os seus movimentos. O que? O que que está acontecendo? Girou o rosto em busca de uma resposta, mas nenhuma apareceu. Eu estava fazendo alguma coisa, não estava? Acho que sim. Mas o que? O pensamento veio em um estalo e fez suas sobrancelhas subirem. A pedra! Girou a barriga para baixo e começou a remar.
Mais uma braçada. E mais uma. Agora outra.